A Constituio Federal de 1988 prev um complexo, alternado e severo sistema de escolha dos membros dos Tribunais de Contas brasileiros.
Complexo porque sempre resultado da conjugao das vontades de mais de um dos Poderes da Repblica: o Executivo e o Legislativo.
Alternado porque a escolha do nome se reveza, ora cabendo ao Executivo, a quem cabe a indicao de 3 membros, ora ao Legislativo, a quem cabe a indicao dos restantes. Os indicados pelo Presidente devem ser aprovados pelo Senado, j os indicados pelo Senado sero nomeados pelo Presidente da Repblica.
Severo porque os requisitos exigidos dos candidatos a comporem os Tribunais de Contas[1] chegam a ser mais rigorosos que os lanados para os Ministros do Supremo Tribunal Federal.[2]
Enquanto o STF demanda de seus membros notvel saber, os Tribunais de Contas vo alm, requestando que o conhecimento seja notrio, e que se conte com experincia mnima de um decnio no ramo que o habilitou ao cargo.
Nada impede, portanto, que um notvel jurista venha ocupar uma das cadeiras do STF, ainda que tenha parcos anos de experincia jurdica. Esse mesmo notvel jurista fica impedido de ser Ministro do TCU, ou Conselheiro de Tribunal de Contas Estadual, mngua de experincia mnima.
Ressoa evidente que a toga dos Tribunais de Contas foi idealizada para ser uma das indumentrias mais seletivas da Repblica. Explicado fica o rigor quando se recorre lembrana, e se constata que prestar contas uma das premissas fundantes do sistema republicano, tanto que esse dever fora alado ao estrito rol de princpios sensveis pela Carta Cidad[3]. O encarregado em julgar a regularidade das contas prestadas verdadeiro fautor da Repblica Brasileira.
Atestada, sem margem para dvidas, a sobranceira importncia conferida pelo Constituinte aos membros dos Tribunais de Contas, cumpre ir adiante e analisar bem amide cada um dos requisitos exigidos para todos que almejem o exerccio dessa republicana funo.
S poder ser membro dos Tribunais de Contas brasileiros aqueles que tenham atingido no mnimo trinta e cinco e no mximo sessenta e cinco anos de idade, que gozem de idoneidade moral e reputao ilibada, e sejam detentores de notrios conhecimentos em sua respectiva rea de atuao, conjugados com dez anos de prtica.
No h maiores dificuldades na averiguao do requisito etrio, haja vista sua flagrante objetividade. O documento de identidade mais que suficiente para sua assimilao. O grau de subjetividade desse requisito de nomeao quase nulo, s podendo ser relativizado na falta de candidatos etariamente aptos ao cargo.
Com efeito, o requisito de idade pode ser, excepcionalmente, posto de lado, quando nenhum dos candidatos passveis de nomeao ao cargo estejam na faixa etria constitucional[4], circunstncia que, embora rara, no pode ser de pronto descartada, em especial quando o rol de candidatos restritssimo, como se d nas vagas reservadas aos Auditores dos Tribunais de Contas[5] e aos Procuradores do Ministrio Pblico de Contas que atuam perante a Corte.
Passado o requisito etrio objetivo, comeam a surgir maiores indagaes sobre os restantes: a idoneidade moral, a reputao ilibada e o notrio conhecimento.
H inequvoca e distinta carga de fluidez na interpretao destes trs conceitos jurdicos indeterminados. E se a indeterminao dos conceitos acaba por conferir relativa rea de movimentao interpretativa possvel, no pode ser tida, de outra banda, como um cheque em branco hermenutico, a abonar qualquer linha de inteleco, ainda que contraposta aos significados flagrantes dos verbetes empregados.
O manejo de conceitos jurdicos indeterminados, embora possa incrementar de dificuldades o processo de aplicao do direito, e, in casu, a escolha dos membros dos Tribunais de Contas, por outro lado evita o engessamento e a desatualizao da norma constitucional, abrindo as janelas para uma constante atualizao interpretativa inspirada e respirada a partir dos influxos e refluxos de uma sociedade aberta de intrpretes da Constituio. Conceitos jurdicos indeterminados, pois, mostram-se inteligentes instrumentos de atualizao normativa sem necessidade de alterao do texto legal.
Tomando carona nessas lies, essa trade de conceitos jurdicos indeterminados idoneidade moral, reputao ilibada e notrio conhecimento - certamente variou, varia e variar de definio com o tempo e com o lugar. E bom que assim o seja.
Nesse diapaso, h fundada discusso na doutrina acerca da (in)existncia de discricionariedade administrativa quando o ato passar pelo necessrio confronto de conceitos jurdicos indeterminados. Parte da doutrina, capitaneada no Brasil pelo eminente Prof. Celso Antnio Bandeira de Mello, reconhece discricionariedade nessas situaes de vagueza lingustica[6].
Com a devida vnia ao gabarito do mestre, no a tese que perfilhamos.
A aplicao de conceitos jurdicos indeterminados pressupe interpretao e inteleco acerca dos significados do texto, e no movimento de volio informado por juzo de convenincia e oportunidade dentro de hipteses igualmente legais de comportamento administrativo, como se d com a discricionariedade.
bem possvel, alis, que terminada a tarefa interpretativa destes termos vagos, no seja gerada qualquer alternativa comportamental autoridade pblica, visto que apenas e to-somente uma conduta estatal seja alfim acobertada pelo ordenamento jurdico. A unicidade de atuao da administrao revelar, nesse vis, vinculao completa, e no poder discricionrio.
Logo, enquanto a multiplicidade de atuao vlida possvel elemento conceitual da prpria discricionariedade, nos conceitos jurdicos indeterminados essa mesma multiplicidade meramente acidental.
A rigor, nos conceitos jurdicos indeterminados o que prepondera a atividade intelectiva, ao passo que o preponderante na discricionariedade a vontade do agente limitada pela finalidade pblica e pela ordem jurdica.
Bem detectou essa questo Rita Tourinho[7], em excelente artigo em que trata sobre o tema. Adiantamos que so nossos os grifos:
Ora, deparando-se com conceitos jurdicos indeterminados caber apreender-lhes o sentido atravs de operao interpretativa, consistente em mera inteleco da lei, ao contrrio da discricionariedade que permite uma opo administrativa volitiva, observados limites normativos. A indeterminao dos conceitos jurdicos somente concerne ao seu enunciado e no a sua aplicao, que permite a princpio, uma nica soluo justa, verificados critrios de tempo e espao. Na discricionariedade, brinda-se um conjunto opcional de solues, devendo ser escolhida aquela que melhor convenha ao fim que recomenda o ordenamento jurdico. (...) Em se tratando de conceitos jurdicos indeterminados, obviamente que nem sempre o processos interpretativo da norma jurdica levar a uma soluo indubitvel. Casos existiro em que no se chegar a uma nica posio. Porm, no se pode da afirmar-se estar diante de um caso de discricionariedade.
De qualquer maneira; seja para aqueles que sustentam discricionariedade na aplicao de conceitos jurdicos indeterminados; seja para aqueloutros que enxergam mero exerccio interpretativo-cognitivo, o campo para o controle externo sobre ato administrativo fundado em norma vaga reduzido sensivelmente, perscrutvel com facilidade somente nas zonas de certeza negativa do conceito.
A fluidez dos significantes empregados na lei terminam por conferir certa prerrogativa de avaliao autoridade competente. Prerrogativa de avaliao que se localizar dentro de um possvel halo conceitual do termo lingustico se mostrar infensa intromisso alheia.
Isto , na apreenso de um conceito jurdico indeterminado h uma rea de certeza positiva em que o conceito amoldvel perfeio, e outra rea de certeza negativa em que o conceito certamente no se encontra presente. O agente competente ter respeitada sua prerrogativa de avaliao no campo que medeia os extremos, mas incidir em ilegalidade caso adote significado jungido s fileiras da certeza negativa do conceito.
Explica-se.
Num colorido em que o ordenamento jurdico veda um comportamento preto, tem-se certeza que a conduta branca vivel. Ocorre que partindo-se do branco at chegarmos ao preto, qualquer aspirante a pintor sabe que so milhares as tonalidades de cinza a comporem a zona gris.
Nessa zona cinzenta, onde no se pode concluir com certeza quando o cinza virou preto, que fica afastado o controle externo (seja judicial, seja via Tribunais de Contas), j que caber ao titular da competncia pblica adotar para o ato sua prpria e legtima compreenso sobre as cores. Jamais poder a autoridade, contudo, e sob a escusa de prerrogativa de avaliao, classificar como cinza o que preto. Nessa hiptese incorrer em ilegalidade, perfeitamente controlvel pelas instncias administrativas e judiciais.
Tais lies se banham de utilidade na perquirio sobre os conceitos de idoneidade moral, de reputao ilibada e de notrio conhecimento na rdua misso de indicar novos membros dos Tribunais de Contas.
A rigor, idoneidade moral e reputao ilibada devem ser vistas em conjunto, numa unicidade conceitual complementar e recproca. Tanto assim que esto previstas de mos dadas no inciso II do 1 do art. 73 da Constituio Federal. So conceitos indeterminados que para sua definio puxam necessariamente outros conceitos indeterminados, num crculo lxico que mais fcil de sentir (e se Direito inteleco, tambm sentimento) do que ser explicado.
O termo que acaba por conferir um mnimo de objetividade aos conceitos o adjetivo ilibada.
Diz-se ilibada, segundo o Dicionrio Michaelis, aquilo que for intocada, pura, sem mancha[8].
O Dicionrio Aurlio segue igual conceituao. Segundo este, Ilibada seria aquilo no tocado, sem mancha, incorrupto[9].
Ambas definies convergem: intocada, sem mancha!
vigorosa a condicionante constitucional, portanto. Para ser membro de Tribunal de Contas a reputao no pode deter qualquer ndoa, totalmente impoluta aos olhos crticos da sociedade.
E aqui cabe trazer a lio histrica de Caio Jlio Csar, um dos mais famosos lderes romanos de todos os tempos, que decretou imediato divrcio de sua ento esposa, Pompia, mesmo admitindo que ela no teve culpa no infeliz episdio em que um homem participou disfarado do ritual sagrado da Bona Dea, que pela tradio romana restrito s mulheres, e l estando, tentou seduzi-la.
Sacramentou Jlio Cesar que A mulher de Csar no basta ser honesta, tem que parecer honesta.
Transportado para os tempos atuais, o rigor da frase deve mui bem ser aplicado aos membros dos Tribunais de Contas. A Constituio no lhes admite dvidas sobre o comportamento.
Isso porque o encargo confiado aos membros dos Tribunais de Contas , justo e primordialmente, curar das contas pblicas, buscando pela contnua probidade na atuao dos agentes da administrao do Estado. Nessa toada, no pode a sociedade nutrir desconfianas acerca da correo e da probidade daquele incumbido de cuidar de seus bens e dinheiros. Garantidor da correo e da probidade, no pode, ele mesmo, ser visto como incorreto e mprobo.
A necessidade do bom exemplo aqui , mais que desejada, exigida peremptoriamente, constituindo-se em verdadeiro elemento normativo cuja ausncia degenera o ato em ilegalidade.
A necessidade de reputao ilibada, se no chega a recomendar a canonizao do futuro membro dos Tribunais das Contas, por outro lado, vai muito alm da mera primariedade penal.
Pode ser que, mesmo no pairando sobre o candidato s Cortes de Contas qualquer suspeita de atividade ilcita, o exagero de determinadas situaes sociais, como a contumcia no excesso etlico, ou o esprito demasiadamente beligerante, maculem a reputao, impossibilitando o acesso ao cargo.
Neste cenrio e com muito mais razo, a existncia de procedimentos instaurados por respeitveis instituies da Repblica contra o aspirante ao cargo, ainda que no findos e conclusivos, como indiciamento em inquritos policiais, ajuizamento de processos cveis de improbidade ou, persecues penais em andamento, sero, mais que suficientes, para obstaculizar o acesso aos Tribunais de Contas.
Estar consagrada, nessas hipteses, zona de certeza negativa do conceito de reputao ilibada.
Realmente, nem a golpes duros de interpretao, pode-se concluir como ilibada a reputao daquele que esteja sob o arsenal acusatrio pblico de graves desvios de conduta, especialmente quando a suspeita de ato de improbidade em prejuzo da prpria Administrao Pblica.
Em contrrio, no vale aqui arrogar o princpio da presuno da inocncia.
Isso porque no se estar condenando ningum antecipadamente s sanes penais, mas apenas reconhecendo que, enquanto houver forte carga de suspeio pblica sobre a reputao da pessoa, no est preenchido um requisito essencial para cargo que compe o vrtice do Controle Externo.
Ao estatuir a necessidade de reputao ilibada, a Constituio imps uma prevalncia prima facie ao interesse pblico, em detrimento da garantia individual da presuno de inocncia.
Nessa situao, h inverso da lgica do inciso LVII do art. 5 da CF, trazendo, para fins de nomeao de membros dos Tribunais de Contas, verdadeiro malefcio da dvida, impeditivo de gozo do assento de Ministro do TCU e Conselheiro de TCE.
Fez o constituinte como Csar. Se no aparenta absoluta e intocada honestidade, no pode estar em Tribunal de Contas.
O outro conceito jurdico indeterminado restante notrio conhecimento possui espectro de indeterminao menor que os anteriores, mas que, ainda assim, pode abrir lacunas de dvida.
Inconteste que a notoriedade do conhecimento no se confunde com sua popularidade, nem faz por demandar que o aspirante a membro do Tribunal de Contas seja fenmeno miditico. At porque, muito dificilmente, um notrio experto de qualquer rea da cincia humana seja figura tarimbada do conhecimento pblico.
O que se exige, na verdade, a notoriedade do seu conhecimento dentro do crculo cientfico/profissional a qual se vincule. Se for jurista, por exemplo, h de ser um jurista de saber reconhecido no meio jurdico em que atua.
Anote-se que a notoriedade tambm no da pessoa. do seu saber, do seu conhecimento.
Pode ser que o membro dos Tribunais de Contas se revele um verdadeiro ermito, avesso a compromissos sociais, mas ser apto indicao, acaso sua produo profissional reverbere no seio da comunidade onde atua.
Por outro lado, ainda que extremamente popular, se sua notoriedade no decorrer de sua atuao profissional, mas por razes pessoais outras, ficar-lhe- vedado o acesso Corte de Contas.
Parece claro, ainda, que a notoriedade no precisa ser nacional, mesmo para os futuros Ministros do TCU que exercero federal jurisdio de contas. Num pas de dimenses continentais como o Brasil, pouqussimos profissionais conseguem notoriedade em todo territrio nacional. Restringir a eles o rol de indicveis, seria criar uma espcie de reserva de mercado que a Constituio certamente no desejou. Basta, portanto, notoriedade local.
O que no pode ser dispensado, em hiptese alguma, a notoriedade do conhecimento. Ainda que restrito determinada localidade, o saber do futuro membro das Cortes de Contas no pode ser objeto de admirao apenas da autoridade indicante, ou de seus familiares, ou de amigos prximos. necessariamente um saber exgeno, que ultrapassa os muros da intimidade do aspirante ao cargo.
Em portugus claro: o saber, por mais notvel que seja, no basta. Deve receber, outrossim, o beneplcito de seu reconhecimento e regozijo pblico.
O notrio conhecimento pode ser mensurado atravs de seu histrico funcional, reputao profissional, engajamento acadmico, produo cientfica, ministrao de palestras e congressos, diplomas de ps graduao e assinatura de obras clebres.
Em qualquer hiptese, a notoriedade do conhecimento deve vir acompanhada da efetiva prtica profissional por pelo menos dez anos.
Outrossim, a Constituio restringe as reas da cincia que habilitam o candidato ao almejado posto, presumindo, de forma absoluta, que o exerccio desse relevante mister constitucional deve orbitar determinados campos de cognio humana que o constituinte reputou de maior pertinncia com o bom desempenhar do controle externo.
Neste diapaso, foram eleitos taxativamente os conhecimentos, ou jurdicos, ou contbeis, ou econmico-financeiros, ou sobre administrao pblica, como imprescindveis para uma boa escolha.
Parece claro que, no tocante aos conhecimentos jurdicos e contbeis, o candidato a membro do Tribunal de Contas deve possuir a devida escolaridade para o exerccio regular do cargo, consubstanciada na comprovao de possuir grau superior em Direito ou Contabilidade. Por sua vez, conhecimentos econmico-financeiros e acerca administrao pblica podem estar relacionados a cursos distintos, como Economia e Administrao.
O que no se pode admitir que pessoa no laureada com grau superior venha a ocupar cadeira da cspide do controle externo. O alto da escarpada demanda essa alta escolaridade.
Caso pessoa que no preencha os requisitos constitucionais venha, ainda sim, a ser indicada pelo Chefe do Poder Executivo, o legislativo tem o dever de recusar-lhe o nome. Cabendo a indicao ao Legislativo, o controle de juridicidade deve comear junto ao Chefe do Poder Executivo encarregado de sua nomeao.
No havendo a devida recusa do Executivo ou do Legislativo, o Presidente do Tribunal de Contas fica autorizado a negar posse, mngua do preenchimento dos requisitos constitucionais. De fato, esta autoridade no se compromete com os equvocos das autoridades que a precederam. Refora tal ilao, o fato da nomeao para o cargo de membro dos Tribunais de Contas no deixar de ser espcie de admisso ao servio pblico, a ser controlada pelo prprio Tribunal de Contas, a teor do inciso III do art. 71 da Constituio Federal.[10]
Estando a administrao circunscrita ao princpio da juridicidade, esto os agentes pblicos no dever de recusar a formao de ato administrativo em desalinho com a ordem constitucional. O princpio da autotutela aqui vigoroso, e perfeitamente cabvel.
E, alfim, frustrado o mltiplo controle administrativo do ato (interno e externo), estar sempre franqueada a via judicial para restaurar a legalidade e a constitucionalidade furtada.
As instncias de controle no s podero - como devero - perscrutar a inteleco dada aos conceitos jurdicos indeterminados, rechaando o nome de quem esteja na zona de certeza negativa dos significados de conhecimento notrio, idoneidade moral e reputao ilibada.
O paradigma interpretativo das instncias de controle h de ser extrado das lies milenares do imperador Jlio Csar.
O candidato a Tribunal de Contas no basta ser honesto, tem que parecer honesto.
A sabedoria romana continua entre ns.